Sempre me fascina pensar como a comida vai além do simples ato de nutrir o corpo. Ela molda quem somos. Na Inglaterra do século XVII, por exemplo, as pessoas diziam após uma refeição: “Nós mesmos tivemos a nós mesmos em nossos pratos”. É uma versão antiga do ditado que tanto ouvimos hoje: “Você é o que você come”.

Ao ler mais sobre o historiador Steven Shapin em seu livro Eating and Being, percebi como as filosofias alimentares influenciaram profundamente a ideia de identidade no Ocidente. Ele resgata as concepções de Hipócrates, que associava comida e medicina, e que foram a base para a conexão entre o que ingerimos e quem somos.
Aprendi que, naquela época, acreditava-se que a dieta não apenas moldava nosso corpo, mas também nossa mente e personalidade. O equilíbrio dos quatro humores corporais — sangue, fleuma e bílis preta e amarela — era considerado essencial para determinar nosso temperamento. Esses fluidos definiam se uma pessoa seria fleumática, sanguínea, melancólica ou colérica. Esperava-se que as pessoas tivessem autoconhecimento suficiente e bom gosto suficiente para escolher alimentos com qualidades que complementassem seu temperamento. Assim, um fleumático (com excesso de fleuma fria e úmida) pode evitar pepinos frios e úmidos, mas procurar cebolas quentes, que um colérico (com excesso de bile amarela quente e seca) evitaria. O melancólico foi rotulado como nervoso, o fleumático como linfático.
As obras de Shakespeare demonstram de forma evidente para o público atual algo que era bem compreendido pelos dramaturgos de sua época: os alimentos e bebidas influenciavam diretamente a composição do corpo e, consequentemente, a formação da personalidade. Em Henrique IV, Parte 2 (1600), Falstaff apresenta uma descrição vívida dos efeitos do xerez, explicando como essa bebida seca o cérebro, eliminando vapores confusos e promovendo uma clareza de pensamento que se manifesta em comentários espirituosos.

Essa visão me fez refletir sobre como, para eles, alcançar um estado ideal dependia de um regime equilibrado. Habitat, exercício, sono, emoções e, claro, alimentação e bebida precisavam estar em harmonia. Era uma forma de vida pautada na moderação e no autoconhecimento.
Ao terminar o livro de Shapin, ficou claro para mim que, no passado, entender o que comemos era também entender quem somos. Essa relação ainda é verdadeira. Ao escolher meus alimentos, agora percebo que não estou apenas nutrindo meu corpo, mas também construindo minha identidade. Afinal, cada sabor carrega uma história, um reflexo de mim mesma.